Presente
( a Tarsila do Amaral)

Durante anos, tomei de arroubo
este Manteau Rouge, da bela Tarsila.
Vesti -o no íntimo, sem outro ruído
que não o de ainda haver arte, libro e libre
estampados a cinzel e esperança no meu ser.
Subi ao libré acompanhada do primeiro cavaleiro
apocalíptico sem luz, que apagou a salvação
do reino das costelas estelares do desamor.
Demorei a me livrar das sobras e das sombras
que a delicadeza embriagante do manto
deixou no revés dos meus ombros.
Vesti meu corpo da pintura do meu verso.
Não precisei cortar as orelhas para provar
que estava viva e que sentia e que o que dentro
estava a correr em mim era sangue mortal e plasma.
Fora o manto, os brincos também
me trucidaram o passado da alma:
ainda oiço o tilintar dos oiros do passado,
os sons decrépitos de sexo, do amor apressado
nas horas e honras das paixões inócuas,
que por anos acreditei serem indeléveis, infinitas,
eternas e memoráveis horas de profuso amor.
Hoje só há o terno, graças a Deus.
A ternura deu-me a redesenhar cada
nuance do vermelho, esquecer o rosa,
redescobrir o branco, a saber que tudo
nasce, se deslumbra e apodrece, feito
a maçã do barão na fruteira de cristal.
Que morra o passado e morram junto
os amores do passado. Viva eu, este dia.
Se eu tiver que escolher entre um copo de vinho barato
e a primeira taça de sangue refinado, grito por Dionísio.
Por Dionísio, pelo Nada e pelo espaço vazio…
Ficam os espaços vazios, o velho oleiro do espírito
sabe que não importa o quanto me esgrime, me esmere,
ou me recrie: há o mistério do inexplicável nada e vazio
que nunca se enche ou se cansa das formas, volumes,
cores, ranhuras, rabiscos e linhas da criação.
Eu jamais vou vestir outra vez as cores do Lobo.
Jamais vou esperar o incendiar do crepúsculo
para ter a sensação de que o amor pode ser
o mais caro preço a ser pago por alguém.
Desventuras à parte, o que há é o consolo
da floresta sem feras, sem homens feras,
sem coração feroz, mais a tênue esperança
de voltar a vestir não le manteau rouge,
mas o primeiro fio de lã vermelho-hematós
que arrombou, criador, a primeva aurora.
De Deus, da minha vida ou a que amanheceu
depois que morri levando comigo toda a cor.
Agora quero pintar bezerrinhos no pasto,
anjos de cara branca no céu e dar de comer
capim limão a pintores e poetas cuja fome
ainda me comove.

manteau_rouge mant2 mant1

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